quarta-feira, 7 de junho de 2017

A máquina

Sentiu um gélido sopro na espinha. Se espalhando por entre as vértebras. Alcançando os pulmões. Com temperatura glacial, a textura de metal percorria suas veias, invadindo cada centímetro do seu corpo, rapidamente. A escassa energia foi multiplicada em intensidade extrema. Havia agilidade nas mãos. Nos dedos. Na mente. Qualquer margem dada a distrações fora excluída. Substituída. Seu sorriso, que expressava o misto de surpresa, alegria, excitação, tomou ar feroz. Não havia implicações subjetivas. Havia disposição. Ela não cessava. Logo, o gelado metal, outrora embutido, tomava espaço em sua pele. Substituía os pelos arrepiados pelo súbito frio potente. Articulava corpo e mente ao tempo e suas engrenagens. Nada mais pararia aquilo que era (finalmente) máquina.


Ilka Souza

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Poça d'água

Foi pisada, espalhada
encurralou, foi respingada
passa carro
passa gente
tem buraco, ela se encaixa.
Não há passos que não molhem,
há camisas encharcadas
dos problemas da cidade.
Se repete, outros se calam
boca grande só se abre
pra xingar motorista parvo,
que após enfrentar o tráfego
inunda ira na calçada.

Ilka Souza

quinta-feira, 16 de março de 2017

A quem se foi


Já faz semanas que teu nome
visita minha mente
faz passeios
em lembranças,
nas buscas de quem eu sou.
Já faz um tempo que tua memória
me recorda quem eu era
possibilidades já perdidas
sim, queria ter sido melhor.
Não cuidei de tua fragilidade
como sei  que deveria.
Não escutei o suficiente das tuas histórias,
que teriam me feito crescer.
As poucas que ouvi, guardei
me impulsionam
a querer saber mais
cada vez mais
me fazem reconhecer tua grandeza.
Não tinha ideia dessa nossa ligação,
mas a memória rala que me resta,
disso tudo,
me traz uma única certeza
e ela só pode ser traduzida em saudade.


Ilka Souza